quarta-feira, 27 de junho de 2012

(Sr. Igual) Arrogância



Um dia olhaste-me nos olhos
e nos olhos me disseste
que nada valia pois não sabia
o que era ler,
o que era escrever,
o que era contar.


Agora que já sei
olha-me nos olhos e diz-me:
quantas vezes erraste,
quantas vezes magoaste,
quantas vezes disseste nunca,
quantas formigas mataste?


Se souberes responder
diz-me também
quanto pesa a Lua
e porque carrego com a ilusão
porque é que ela é tão pesada
se é um saco cheio de nada.


Diz-me também
donde vim e para onde vou
e se nem vim de lado algum
nem vou para lugar nenhum,
diz-me onde estou e sempre estive,


ou diz-me pelo menos onde não estou
e de entre esses lugares diz-me se há um só
tranquilo como o mar revolto
em que se consiga estar
sozinho e com toda a gente,
sensível e indiferente.


Se nada souberes que eu não saiba,
cala-te como eu.
Se nada vires que eu não veja,
abre os olhos e tenta.


Tenta também tu
ser como qualquer outro
que não sabe, nem diz, nem mente
acerca do mundo e de toda a gente.

Tenta também tu
ser como qualquer outro.
Tenta ser humilde, mas nunca satisfeito.
Tenta, tenta e conseguirás.


Conseguirás primeiro ver
que não és nada,
que nada dizes que não seja nada,
que nada fazes de significativo.


Depois verás que Deus existe
mesmo que digas o contrário.
Mesmo que fujas, ele foge contigo.
Mesmo que não exista,
é essa a sua forma de existir.


Por fim, verás que não te serviu de nada
teres aprendido a ler,
teres aprendido a escrever
e teres aprendido a contar.


Porque em todas as leituras
só te perdes em pensamentos que ainda não são teus.
Porque em todas as leituras
não encontras as respostas às perguntas que não fazes.


Porque nos teus escritos
só desprezas, só dizes mal
e não te apercebes que é de ti.


Porque nos teus escritos
só tens certezas, não tens dúvidas
e não te apercebes: és uma dúvida.


E nas tuas contas, não contavas com esta.


És uma dúvida que só tem certezas
e sentes-te tão só como uma certeza que só tem dúvidas.


Agora que tens a certeza
que talvez existas, talvez não,
que tudo o que pensas tem a forma de um quiçá
e tudo o que dizes tem a essência de um talvez...


olha para a Lua e pensa:
nunca saberás quanto pesa.


Quarta-feira, 1 de Julho de 1998
SAC

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Choro na Soleira da Porta




Choro na soleira da porta.
Não sei porque choro,
ou talvez saiba,
talvez julgue saber.


Choro defronte da porta.
Não sei porque choro.
Passa uma rapariga, para mim olha
e me vê a chorar, mas passa,
passa sem me beijar, falar...


Choro atrás da porta.
Não sei porque choro.
Passa um homem, nem repara em mim,
ou não quis e passa,
passa sem me cumprimentar...


Choro olhando a porta, escorregam-me as lágrimas.
Não sei porque choro.
Passa um rapaz, não me fala,
não me fala e vai-se embora...


Choro encostado à porta, escorrego com a dor, atroz...
Não sei porque choro.
Passa uma mulher, no jardim,
ela é bonita, mas não me liga
e passa sem me acariciar...


Não sei porque choro,
ou talvez saiba, 
talvez julgue saber...
choro porque pintei mal a porta,
esborratei, estraguei a porta...


Mas é pouco para eu chorar,
mas então: - Porque choro?
Porque todos os transeuntes conhecia, com eles falo,
mas nenhum dos passantes me dirigiu a palavra.


Choro, de tudo choro.
Choro, porque de tudo choro.




Julho de 1993
SAC

sábado, 5 de novembro de 2011

O Tempo Passa




O tempo passa,
o café arrefece
mas só se esquece
do tempo quem passa
atrás do tempo...


São aqueles
a quem o tempo ficou
o café arrefeceu
se esqueceu deles,
daqueles...


a quem o tempo
se tornou
custoso, pesaroso
por causa dos outros.
Forçoso, doloroso
por culpa dos outros.
Desespero, exaspero.
Por prazer dos outros
estou entre a espada e a parede.


A espada de bronze afiada.
A parede de rede.
A rede envolta em cimento
... dum prédio que ali estava.


Voltei à realidade
e... lá estava:


A faca da manteiga
apontada, afiada a mim,
por trás de mim;
por trás a parede do café, meiga...


Mais meiga que a espada.
E empurro a parede.
Nunca a espada afinada.
Empurro a parede.


O tempo passa (o esforço)
O café arrefece (mimoso)
Mas só se esquece
do tempo quem passa
atrás do tempo.


Novembro de 1994
SAC

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Esquecimento




Antes dos teus lábios
não sabia o sabor do esquecimento.
Antes dos teus lábios
só sabia pensar e nada mais.
Antes dos teus lábios
a minha vida era um pobre lamento.


Lamento escondido pelo riso,
encoberto pelo equilíbrio,
por debaixo de um lençol de gargalhadas.


Já não me lembrava como beijar
a sós com alguém.
Já não me lembrava como beijar
a sós comigo.
Já só me lembrava como evitar
a presença de outra também.


Mas nesse dia esqueci-me do tudo
e do nada que tanto me fez sofrer.
Nesse dia esqueci-me do mundo,
do tempo, do espaço e da palavra querer.


O passado esqueceu-se de mim
e eu fiquei tão contente
que o mar era o céu onde estávamos
quietos, num beijo de areia.


Quinta-feira, 28 de Agosto de 1997
SAC

Dilúvio



Estou perdido, às voltas de um triste,
sem rumo bem no fundo de dois túneis,
onde o sol já brilha menos que a noite
e onde estalactites são armas em riste.


Sem que eu soubesse ou calculasse
o mundo ruiu, a Lua endoideceu.
Andava às voltas e volta como eu.
Marés subiram sem que a ave voasse,
tornou-se em peixe e a Terra morreu.


Sem que eu soubesse ou calculasse
em sonho a cidade morreu também,
pois os homens sempre foram de pedra
e eu sempre fui feito de sonhos
e esse sonho também era meu.


Nada fiz p’ra que isto acontecesse.
Andei depressa quando os pés não podiam,
subi montes e montanhas de sofrer,
quando o meu coração queria descer um rio,
 queria deitar-se no mar,
 queria despir-se contigo.


Só estou sentado na poltrona vaga,
sozinha cadeira, só de ninguém,
sem ti do meu lado, sem ti meu bem,
à espera de mim, à espera de alguém.


Nada fiz p’ra que isto acontecesse.
Andei depressa quando os pés não podiam,
subi montes e montanhas de sofrer,
quando o meu coração queria descer um rio,
 queria deitar-se no céu,
 queria dormir contigo,
 queria dormir sozinho.


Quinta-feira, 18 de Julho de 1996
SAC

domingo, 16 de outubro de 2011

Assim se Faz Um Velho



Assim se faz um velho:
canudos e livros esquecidos,
paredes e lamentações vãs,
salas e anfiteatros desguarnecidos,
tinta de canetas muitas e muitas cãs...


Comboios e autocarros apinhados,
descidas que já subi,
vidas que já vivi,
subidas donde já caí,
vendedores e mendigos calados...


Quilómetros percorridos... porque os fizeste?
Furiosas mulheres... por quem me tomaram?
Lábios de relações inférteis... porque os beijaste?


Tenho o rosto macerado de farsas,
os meus olhos são buracos por onde entraram muitos outros,
a minha boca está fechada, pejada de cicatrizes,
pela minha testa passaram centenas de arados
e as minhas orelhas são covas abertas por todos.


e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador.


e assim me fazem velho:
beijos e beijos esquecidos,
festas e carinhos guardados
nas gavetas por latidos
de cães e sentimentos anafados


pela gula da inconsciência,
pela ingratidão do esquecimento,
pela frieza de um fingir,
pela conversa que não o é,
pela cobardia do não gostar,
pela triste sinfonia de perder uma pessoa
por deixar de sentir um sentimento
por viver do passado, do medo e não do momento.


e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador:
estou velho por causa delas.


Quinta-feira, 18 de Outubro de 1996
SAC

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Empatia



Olho-te e sei o que pensas.
Olhas-me e sei o que pensas.
Foges com o olhar e sei
em que acabas de pensar.


Dizes uma palavra, solta.
Dizes uma frase, profunda,
e eu acabo por dizê-la
um mês, dois dias, no minuto seguinte
com um sorriso que volta.


Chegamos a dizer a mesma coisa
no mesmo segundo, a mesma palavra
no mesmo milésimo, a mesma letra
e o som, a expressão, o riso.


Parece tudo tão perfeito.
Parece tudo tão bonito.
Parece tudo tão eterno.


E não é perfeito, porque estás longe.
E não é bonito, porque só vejo saudade.
Mas é eterno.


Porque tenho memória.
Porque tenho coração.
Porque te tenho dentro de mim.


Mãos nas mãos,
olhos nos olhos,
alma no espelho
e somos irmãos.


De carta em carta
de pé o alcatrão,
os outros vêem-se,
nós não.


Olhos nos olhos,
alma no espelho.
Falamos. E somos gémeos.


Missivas de olhos vendados
palavras de corpos apartados.
Falamos. E não deixamos de o ser.




Perto de ti, sou feliz,
sinto-me bem e apetece-me o Sol.
Perto de ti, sou contente,
paro, olho e escuto em volta.
Perto de ti, sou turista,
filmo e amo as pessoas.


Contigo, sinto-me completo,
nem que seja por um minuto.
Contigo, sinto-me completo,
nem que seja por um sorriso.


Contigo... sinto-me bom, bem, realizado.
    sinto-me bonito.
    sinto-me eterno.


No entanto...


Nunca serei perfeito.
Nunca fui bonito.
Mas sou eterno.


Porque tens memória.
Porque tens coração.
Porque me tens dentro de ti.




Domingo, 18 de Fevereiro de 1996
SAC

sábado, 3 de setembro de 2011

Dura Realidade


Estou de pé à espera de autocarro.
Com uma mão bebo a minha chávena,
com outra tiro roupa de um armário
e faço as malas para fora daqui.

Cheguei à conclusão que a chávena
era de louça e não se podia beber
e que o armário era imaginário
quando um autocarro me encheu as calças de água.

Enquanto os outros, desesperados,
gritavam, berravam, coitados,
eu sorri, conformado: não havia nada a fazer.

Quarta-feira, 6 de Novembro de 1996
SAC